26 novembro 2007

Os livros


A Teka do Apontamentos Sentidos desafiou-me há dias para uma corrente sobre livros (não, Teka, não me tinha esquecido!) e, por isso, aqui estou (acho que pela primeira vez!) para falar de um livro. Antes, porém, duas considerações:

- sempre fui um tanto ou quanto avessa às correntes, muito por culpa daquelas que recebi e que acabavam com o inenarrável "se não enviares isto para 147 pessoas no próximo minuto, sofrerás uma grande desgraça..."; nunca percebi que raio de amigo é capaz de nos sentenciar desgraças imensas só para salvar a própria pele (assim, de repente, só me estou a lembrar daquele amigo que, no Monopólio, nos dá um tiro). Felizmente, não é de uma ameaça que se trata aqui mas de um convite ao prazer de folhear um livro e de partilhar a descoberta das palavras que lá moram;

- pegar no livro mais próximo, quando se vive numa casa pequena, tem a vantagem de nos permitir escolher qualquer um, já que todos os livros estão, inevitavelmente, próximos; portanto, foi isso que fiz: fui abrindo páginas 161 à procura de uma 5ª frase que, fora do contexto, valesse por si.

Comecei pelo Mau tempo no canal, do Vitorino Nemésio, livro que foi e veio de férias comigo marcado exactamente na mesma página - já devia ter aprendido que, em férias urbanas, não sobra tempo para ler! - mas achei que a página 161 não era suficientemente representativa. Depois passei a outro e outro e mais outro, até que cheguei ao A Gloriosa Família, do Pepetela.

O livro conta a história da família Van Dum e passa-se no séc. XVII, em Luanda. Particularidade deliciosa: o narrador é o escravo do Sr. Van Dum, que o segue para todo o lado e vai comentando tudo o que vê e não vê (o que não vê imagina, já que, como ele dirá a certa altura, a única liberdade de um escravo é imaginar).

Abri, então, a página 161 e não resisti a trazer para aqui não uma frase mas um parágrafo inteiro, com uma consideração do escravo (ao longo da história nunca haveremos de saber o seu nome) sobre o adultério:

"Os brancos são mesmo engraçados, de tudo fazem um drama. Se um homem é apanhado em adultério, se desafiam para duelos, têm pelo menos de se ferir, senão o marido enganado deixa de ser considerado homem, é um miserável cão. Complicam enormemente as coisas, dá divórcio, depois é preciso saber com quem ficam os filhos e como vão dividir as propriedades e os bens, enfim, uma trabalheira. (...) Na terra da minha mãe é tudo muito mais fácil, o enganador apanhado em flagrante tem que pagar uma multa, que alguns chamam macoji, e pronto, com a galinha ou o cabrito entregue fica reparado o dano provocado na família. Continuam todos amigos, a paz reina. Se do acto nascer um filho, é pertença da casa onde nasceu, e o pai é evidentemente o marido da mulher. Quem pode mesmo saber se o acto provocou a gravidez? E porquê haveria uma criança de pagar pelo erro dos outros, ficando bastardo como entre os brancos? Depois, eles é que são os civilizados...".

A simplicidade pode ser desarmante. Aliás, tenho para mim que é precisamente por isso - pelo medo de nos sentirmos desarmados - que complicamos tudo.

Pepetela, A Gloriosa Família, Publicações D. Quixote, Lisboa, 1997 (1ª Ed).

1 comentário:

Teka disse...

Muito bem escolhido o parágrafo – outra coisa não seria de esperar – e fez-me reflectir como nós, "Papalagui", perdemos “tempo” a sentir complexamente, o que talvez seja simples na sua essência.
Ao pensar no “tempo” que já perdi lembrei-me de que até o tempo, não tem o mesmo significado para todos e não resisto a transcrever os ensinamentos de Tuiavii.
“... Não precisamos de mais tempo do que o que temos, temos sempre tempo suficiente. Sabemos que atingiremos o nosso alvo a tempo, e que muito embora ignoremos quantas luas se passaram, o Grande Espírito nos chamará quando lhe aprouver. Devemos curar o Papalagui da sua loucura e desvario, para que ele volte a ter a noção do verdadeiro tempo que tem perdido. Devemos destruir as suas pequenas máquinas do tempo e levá-lo a confessar que há muito mais tempo do nascer ao pôr-do-sol do que ao homem lhe é dado gastar” (in O Papalagui. Discursos de Tuiavii Chefe de tribo de Tiavéa nos mares do Sul. Edições Antígona. Lisboa. 1996. pp37)

Se calhar... Andei a ganhar tempo!